A responsabilidade do transportador e a legislação aplicável no transporte marítimo
Sabe-se que o transporte marítimo de linha regular é contratado
através de um documento chamado Conhecimento de Embarque (em inglês Bill of Lading ou
simplesmente B/L) que tem as funções básicas de servir como um recibo de entrega da
carga a ser embarcada; evidenciar um contrato de transporte entre a companhia marítima e
o usuário e representar um título de propriedade da
mercadoria (transferível e negociável).
É sabido, também, que, em seu verso, o B/L contém uma série de cláusulas que
especificam e limitam a responsabilidade do transportador marítimo durante o transporte.
Entretanto, pelo fato de o Conhecimento de Embarque se tratar de um contrato de adesão,
no qual o usuário simplesmente adere às condições estabelecidas pela companhia
marítima, muitos embarcadores não se detém em uma análise mais apurada das cláusulas
estabelecidas no verso do documento e um número ainda maior simplesmente desconhece a
legislação aplicável ao contrato de transporte marítimo formalizado através do B/L, o
que pode ser algo extremamente temerário.
Todos os Conhecimentos de Embarque apresentam em seu verso uma cláusula denominada
"Paramount" ou principal que é a que incorpora a legislação aplicável ao
contrato. As demais cláusulas servem apenas para detalhar as regras incorporadas, não
podendo nunca contrapor-se a elas.
Seria básico que todas as pessoas que contratassem o transporte marítimo conhecessem a
fundo a legislação aplicável em um Conhecimento de Embarque, já que a mesma define
questões de suma importância como: regime de responsabilidade do transportador
marítimo (situações em que será responsável perante o usuário por perdas e danos
nas mercadorias e situações em que não o será); limites de indenização existentes
em caso de ser apurada uma responsabilidade do transportador e definição dos
prazos para o usuário efetuar reclamações por danos ou faltas de mercadorias e
interpor ações decorrentes desses fatos.
Justamente por estarem os transportadores marítimos sujeitos, muitas vezes, a embargos e
reclamações que podem variar devido às diferentes legislações aplicáveis em cada
país, há muito tempo existe um consenso sobre a necessidade de uniformizar a
regulamentação do transporte marítimo, objetivando uma maior transparência e
segurança em sua contratação.
Nesse sentido, o primeiro avanço significativo referente à tentativa de uniformizar a
legislação aplicável no transporte marítimo corresponde às Regras de Haia de 1924, a
qual logrou um certo êxito, sobretudo devido ao grande número de países signatários
(setenta e três Estados contratantes até 1968, incluindo os países de maior
importância no transporte marítimo). Entretanto, nem todos os países signatários
aderiram às posteriores alterações nas referidas Regras (representadas pelo Protocolo
de 1968 que configurou as Regras de Haia Visby e pelo Protocolo DES de 1979 o qual
incorporou os Direitos Especiais de Saque do FMI no cálculo dos limites das
indenizações a serem efetuadas pelo transportador marítimo) e isso iniciou um
rompimento da uniformidade até então alcançada.
Uma vez que o sistema baseado nas Regras de Haia e suas posteriores modificações
privilegiava claramente os interesses dos transportadores, foram elaboradas em 1978 as
Regras de Hamburgo que, embora tenham entrado em vigor somente em 1992 e ainda hoje tenham
uma aplicação limitada, ocasionaram um aumento ainda maior no processo de fragmentação
e dispersão legal. Tal fato tornou a uniformidade na regulamentação do transporte de
mercadorias por via marítima algo ainda mais distante.
Entretanto, ainda que seja uma realidade toda essa diversidade de regimes legais
demonstrada pelas diferentes combinações entre as diversas Convenções Internacionais e
as legislações nacionais vigentes, pode-se afirmar que as nações de maior importância
no comércio marítimo, ou seja, aquelas com as maiores frotas mercantes, aderiram às
Regras de Haia Visby de 1968 e ao Protocolo DES de 1979, ficando reservada às Regras de
Hamburgo uma aplicação bem mais restrita.
Em face do que foi comentado, merecem ser revistas algumas características importantes
das Regras de Haia Visby e Hamburgo.
Como comentamos, as Regras de Haia Visby impõem ao transportador marítimo um regime
legal um tanto brando. As Regras prevêem 17 causas que isentam o transportador de culpa,
entre elas: falta náutica; incêndio; perigos do mar; atos de guerra; culpa do
embarcador; greves; desvios de rota para salvamento; vício próprio da mercadoria;
embalagem inadequada e outras que não decorram de culpa do transportador ou seus agentes.
Além disso, é excluída a responsabilidade por atraso na entrega das mercadorias e por
cargas carregadas no convés.
Por outro lado, as Regras de Hamburgo têm como característica principal a inclusão do
conceito da culpa presumida do transportador, prevendo também uma indenização por
atraso na entrega das mercadorias.
Quanto aos limites de indenização, as Regras de Haia Visby impõem um limite de 666,7
DES por volume ou 2 DES por Kg, o que resultar maior; e as Regras de Hamburgo prevêem um
limite de 835 DES por volume ou 2,5 DES por Kg, o que resultar maior e, ainda, um limite
de 2,5 vezes o valor do frete das mercadorias que tenham sofrido atraso, não podendo
nunca ultrapassar o valor do frete total do B/L.
Portanto, o embarcador estará sujeito a distintos regimes de responsabilidade e limites
de indenização que serão levados em conta pelos transportadores marítimos, dependendo
da legislação nacional aplicável e dos países que ratificaram uma ou outra
Convenção. As Regras de Haia Visby foram ratificadas por países como Bélgica, Canadá,
Dinamarca, Equador, Finlândia, França, Grécia, Itália, Japão, Luxemburgo, Noruega,
Holanda, Polônia, Espanha, Suécia, Suíça e Inglaterra. Já as Regras de Hamburgo, são
aplicadas por Áustria, Barbados, Chile, Egito, Líbano, México, Seychelles, Singapura,
Eslovênia, Marrocos e grande parte dos países africanos.
A importância dessas Convenções para exportadores e importadores é óbvia, já que os
Conhecimentos de Embarque, em sua cláusula principal, costumam vincular o contrato à lei
do país do transportador o qual poderá ter ratificado uma das Regras analisadas.
Entretanto, a submissão de um contrato de transporte celebrado no Brasil a uma lei
estrangeira é considerada inadmissível pela lei brasileira, de acordo com o artigo 9º
da Lei de Introdução ao Código Civil que estabelece que, para reger as obrigações,
"aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem". Portanto, um
Conhecimento de Embarque emitido no Brasil estará sempre sujeito à legislação
brasileira, já que a nossa doutrina não admite a autonomia da vontade das partes para
escolher a lei aplicável em um contrato. Sendo assim, em Conhecimentos de Embarque
emitidos no Brasil, qualquer cláusula que remeta a uma lei estrangeira ou a uma
Convenção Internacional não ratificada pelo país não terá validade. No entanto, por
outro lado, poderá ser aplicada uma das Convenções Internacionais ou a legislação de
um país estrangeiro em Conhecimentos de Embarque firmados fora do país.
Do exposto conclui-se a importância de que os exportadores e importadores não só
analisem detidamente as cláusulas contidas no verso de um B/L, mas também conheçam a
fundo as Convenções Internacionais vigentes ou a legislação nacional aplicável e suas
implicações nas operações de transporte marítimo que contratarem, pois as mesmas
determinam a responsabilidade do transportador marítimo e limitam o montante de
indenização em caso de avarias, muitas vezes tornando necessária a contratação de um
seguro diferenciado por parte do usuário, caso queira resguardar-se de um risco que, se
concretizado, não será de responsabilidade do transportador.
Guilherme Bergmann Borges Vieira,
é formado em Administração com Habilitacão em Comércio Exterior, Master en Gestión
Portuaria y Transporte Intermodal pela Universidad Pontificia Comillas de Madrid,
professor universitário e consultor nas áreas de comércio exterior e transporte
internacional.
gbvieira@cpovo.net
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