A falta de uniformidade na legislação aplicável no
transporte multimodal
Para um correto entendimento das regras que regulam o transporte
multimodal, devemos considerar as convenções internacionais vigentes em cada modal e
também as leis de caráter nacional aplicáveis em determinados países.
Assim, sabe-se que, no caso do modal marítimo, as convenções internacionais estão
representadas pelas Regras de Haia de 1924, suas posteriores alterações (Regras de Haia
Visby de 1968 e Protocolo dos Direitos Especiais de Saque DES de 1979) e pelas
Regras de Hamburgo. Essas convenções foram analisadas mais detalhadamente no artigo "A
responsabilidade do transportador e a legislação aplicável no transporte
marítimo", publicado no Guia Log.
Embora as possíveis combinações entre os diferentes países que ratificaram uma ou
outra convenção e aqueles que aplicam leis nacionais já representem uma significativa
dispersão legal, pode-se afirmar que os países que apresentam maior importância no
transporte marítimo, ou seja, os que possuem as maiores frotas mercantes, ratificaram as
Regras de Haia Visby.
É importante lembrar que as regras de Haia Visby estão fundamentadas em 17 causas de
isenção de responsabilidade do transportador marítimo, entre elas: falta náutica;
incêndio; perigos do mar; atos de guerra; culpa do embarcador; greves; desvios de rota
para salvamento; vício próprio da mercadoria; embalagem inadequada e outras que não
decorram de culpa do transportador ou seus agentes. Cabe salientar, também, que as regras
não incluem o transporte de animais vivos e de cargas no convés.
Como essas regras representavam claramente os interesses dos transportadores marítimos,
em 1978 foram elaboradas as Regras de Hamburgo, tendo como característica principal o
estabelecimento do princípio de presunção da culpa do transportador marítimo.
Entretanto, as Regras de Hamburgo foram ratificadas apenas por poucos países de menor
importância no transporte marítimo (entre eles Áustria, Barbados, Chile, Egito,
Líbano, México, Seychelles, Singapura, Eslovênia, Marrocos e grande parte dos países
africanos) e só entraram em vigor em 1992, quando se atingiu o número mínimo de
ratificações estabelecido pela Convenção.
No caso de um transporte multimodal, que é aquele que envolve mais de um modal de
transporte e é realizado por um único operador, que será o responsável perante o
usuário pelo trajeto total acordado, é essencial que fique claro que devemos também
considerar a legislação aplicável nos outros modais e não apenas no marítimo. Como
exemplo, podemos citar as convenções sobre transportes terrestres vigentes na Europa:
Convenção CMR sobre transporte rodoviário internacional de cargas e Regras CIM sobre
transporte ferroviário internacional de cargas.
É evidente que as diversas convenções aplicáveis em cada modal causam uma enorme
dispersão legal, já que as mesmas variam quanto à responsabilidade do transportador,
limites de indenização, prazos para efetuar reclamações e interpor ações etc. Todos
esses fatores, somados às legislações nacionais aplicadas por alguns países, podem
gerar conflito e insegurança jurídica às partes contratantes (transportador e
usuário).
Por esse motivo, há muitos anos a comunidade internacional despertou para a necessidade
de elaborar uma convenção internacional sobre o transporte multimodal de cargas e passou
a concentrar esforços nesse sentido.
Assim, surgiu a Convenção das Nações Unidas de 1980 sobre o Transporte Internacional
Multimodal de Mercadorias, mais conhecida como Convenção de Genebra. Entretanto, essa
Convenção, quanto à responsabilidade do transportador marítimo, estabelece critérios
semelhantes aos das Regras de Hamburgo e, em função disso, não foi bem aceita, não
tendo sido até o presente momento ratificada por um número suficiente de países que
permitisse sua entrada em vigor.
E, devido à falta de uma convenção internacional vigente sobre a matéria, foram
elaboradas pelas Nações Unidas em colaboração com a CCI - Câmara de Comércio
Internacional as Regras UNCTAD/ CCI sobre Documentos de Transporte Multimodal. Essas
regras, de certa forma, atenuam o rigor imposto pela Convenção de Genebra, recorrendo a
alguns critérios estabelecidos pelas próprias Regras de Haia Visby no que se refere ao
transporte marítimo. Entretanto, devemos salientar que as Regras UNCTAD/CCI são de
caráter privado e de aplicação facultativa às partes.
Podemos concluir, portanto, que não existe uma convenção internacional vigente sobre
transporte multimodal. E é por essa razão que, a fim de disciplinar as relações
jurídicas decorrentes da realização desse tipo de transporte, alguns países e/ou
grupos de países (blocos econômicos) têm elaborado legislações próprias. Entre elas,
podemos citar o Acordo Parcial para a Facilitação do Transporte Multimodal (firmado
pelos países do MERCOSUL e ratificado pelo Brasil através do Decreto nº 1563 de
19/07/95) e a própria Lei do OTM (Lei nº 9.611 de 19/02/98 sobre o Transporte Multimodal
de Cargas que foi regulamentada pelo Decreto nº 3.411/2000).
Analisando as duas legislações, percebemos que as mesmas combinam disposições
existentes nas Regras de Haia Visby com algumas das Regras de Hamburgo e nos parece que,
sob um ponto de vista global, a contribuição dessas leis de caráter local ou regional
é bastante limitada, pois aumentam ainda mais o problema da dispersão e dos conflitos
legais, podendo surgir a seguinte pergunta:
"Qual é, afinal, a lei aplicável em um contrato de transporte multimodal, a do
país onde foi emitido o DTM Documento de Transporte Multimodal, a do país onde
está situado o porto de carga, a do porto de descarga, ou aquela estabelecida no contrato
de transporte multimodal?"
Esta é, sem dúvida, uma questão que dá abertura, sob a luz das regras vigentes, a
diferentes interpretações e, conseqüentemente, a inúmeros conflitos no campo do
transporte multimodal, quanto à responsabilidade do operador.
De qualquer modo, devemos destacar o valor do Acordo Parcial e da Lei do OTM, pois,
logicamente, é melhor um possível conflito de leis do que a simples falta de
regulamentação.
É importante ressaltar, ainda, que a nossa Lei de Introdução ao Código Civil
LICC em seu artigo 9º estabelece que os contratos firmados no Brasil estarão sempre
sujeitos à lei brasileira. Sendo assim, um DTM emitido no país estaria sujeito à nossa
Lei do OTM. Nossa legislação não aceita a autonomia da vontade das partes para escolher
a lei aplicável em um contrato e, sendo assim, qualquer cláusula em um contrato de
transporte que remeta a uma lei estrangeira (lei do país do transportador) ou a uma
convenção internacional da qual o país não faça parte deverá ser considerada nula.
A questão fica mais complexa quando se trata de um DTM emitido fora do país, como no
caso de nossas importações CFR. Nesse caso, poderiam ser aplicadas as Convenções
Internacionais vigentes em cada modal, dependendo dos países que as ratificaram ou,
ainda, as disposições de caráter nacional existentes.
Quanto ao Acordo Parcial, embora o mesmo tenha uma aplicação limitada, é inegável sua
importância, já que estabelece um regime legal único para regulamentar os
transportes multimodais realizados no âmbito do MERCOSUL.
Apenas a título de comparação, cabe salientar que na Europa, embora o transporte
multimodal exista de fato há algumas décadas, as regras e convenções que o
regulamentam continuam sendo unimodais, ou seja, variam em função do meio de transporte
de que se trate, o que evidencia a importância do Acordo para os países do MERCOSUL.
Conclui-se, por fim, que a dispersão legal é um problema em se tratando de transporte
multimodal e aos usuários e operadores cabe a difícil tarefa de estar bem informados
sobre essa problemática e suas implicações.
Artigo desenvolvido com o apoio da Universidade
de Caxias do Sul.
REFERÊNCIAS:
Convenção CMR (Convention Marchandises
Routiers) relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Rodovias
(Genebra, 19/05/56).
Convenção das Nações Unidas sobre
Transporte Internacional Multimodal de Mercadorias (Convenção de Genebra de 24/05/1980).
Convenção das Nações Unidas sobre
Transporte Marítimo de Mercadorias (Regras de Hamburgo de 30/03/78).
Convenção Internacional de Bruxelas para
aplicação de regras em matéria de Conhecimentos de Embarque (Regras de Haia de
25/08/1924).
Decreto nº 1563 de 19/07/95 (Acordo de Alcance Parcial para a
Facilitação do Transporte Multimodal de Mercadorias no âmbito do MERCOSUL de 30/12/94).
GONZÁLEZ, José María Alcántara. La falta de uniformidad actual en la
regulación del transporte de mercancias por mar y del transporte multimodal. Revista
Derecho de los Negocios, nº 117. Madrid: Ed. La Ley, 2000.
Lei nº 9.611 de 19/02/98 sobre o Transporte Multimodal de Cargas (Lei do
OTM) e Decreto nº 3.411/2000.
Regras CIM (Regles Uniformes Concernant le Contract de Transport
Internacional Ferroviaire de Marchandises), Berna, 07/02/70.
Regras UNCTAD/ CCI sobre Documentos de Transporte Multimodal.
Revisões da Convenção Internacional de Bruxelas de 25/08/1924 para
aplicação de regras em matéria de Conhecimentos de Embarque de 23/02/68 e 21/12/79
(Regras de Haya-Visby e Protocolo DES).
SOARES, Orlando Estêvão da Costa. Responsabilidade Civil no Direito
Brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
abril/2001
Guilherme Bergmann Borges Vieira,
é formado em Administração com Habilitacão em Comércio Exterior, Master en Gestión
Portuaria y Transporte Intermodal pela Universidad Pontificia Comillas de Madrid,
professor universitário e consultor nas áreas de comércio exterior e transporte
internacional.
gbvieira@cpovo.net
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