O Mercosul entre ALCA e União Européia
O Brasil é um país que se orgulha de ter uma política externa com presença
universal, com interesses em todos os quadrantes. Alguns destes interesses são fortemente
marcados pelo momento histórico e por circunstâncias políticas e traduzem-se, por
conseguinte, em relações que tiram muito de sua substância da realidade conjuntural.
Outros relacionamentos, porém, são mais permanentes. A vizinhança, por exemplo, é um
fator que faz da América do Sul "a circunstância no nosso eu diplomático".
Uma obra bem sucedida, secular, de superação de conflitos e de aproximação resultou no
Mercosul, o nosso principal projeto de política externa.
O relacionamento BrasilAlemanha também se caracteriza por sua duração, por
sua densidade, por sua resistência a percalços momentâneos, ainda que por vezes de
grande intensidade, por sua abrangência temática como um componente central da
política externa brasileira ao longo do tempo. Como disse o Presidente Fernando Henrique
Cardoso em Berlim, é um "relacionamento que atingiu um grau tão elevado de
densidade e qualidade que passou a ter sentido verdadeiramente estratégico para a
atuação internacional de ambos os países".
Quais serão as implicações das negociações da ALCA e entre o Mercosul e a União
Européia para essa parceria BrasilAlemanha? Ainda é cedo para estimar os efeitos
econômicos de acordos cujos contornos ainda estão indefinidos, e cuja implementação
ainda se estenderá por muitos anos. Ainda assim, um primeiro e positivo
resultado daquelas negociações é o interesse renovado que temos percebido, por parte
dos empresários e das autoridades européias, no Brasil e no Mercosul.
De fato, era difícil evitar, até há pouco tempo, a sensação de que a América Latina
ocupava uma posição secundária na lista de prioridades da União Européia. O processo
de adaptação da União Européia para incorporarar os países do Leste Europeu, e o
diálogo com os países do Mediterrâneo, com a África e, mais recentemente, até mesmo
com a Ásia, relegavam o relacionamento entre as duas regiões a uma certa inércia.
O lançamento de negociações com vistas à conclusão de um acordo de livre comércio
inter-regional, em junho de 1999, pelos Chefes de Estado do Mercosul e do Chile e da
União Européia, colocou as relações entre as duas regiões em um novo patamar
qualitativo. Ainda que, num primeiro momento, as negociações tenham progredido
lentamente, nas reuniões do Comitê de Negociações Bi-regionais realizadas em novembro
de 2000, em Brasília, e em março último, em Bruxelas, tivemos a satisfação de
observar a maior disposição, por parte de nossos parceiros europeus, em fazer avançar
os trabalhos. Estamos bem encaminhados para o início, no segundo semestre, de discussões
sobre métodos, modalidades e calendário das negociações para a eliminação
progressiva das tarifas sobre bens e para a liberalização do comércio de serviços.
Com isso, as negociações entre o Mercosul e a União Européia ocorrerão, se não
simultaneamente, ao menos em paralelo com as negociações correspondentes na ALCA. Embora
não seja realista esperar uma correspondência absoluta entre os dois processos, até
mesmo em função da diferença no número de atores, não temos escondido nosso desejo de
que nossas duas principais negociações comerciais procedam em ritmos similares. O
Brasil, como seus parceiros do Mercosul, tem seu comércio exterior dividido de maneira
relativamente equilibrada entre as diferentes regiões. No ano passado, a América do
Norte foi o destino de um quarto de nossas exportações, ao passo que a União Européia
representou proporção similar - 27%. Não temos interesse em forçar desvios
significativos no padrão de equilíbrio de nosso comércio internacional, através de uma
ligação preferencial, de caráter excludente, com apenas um dos grandes pólos da
economia internacional. É claro que um cenário desse tipo tampouco interessaria a nossos
parceiros europeus.
O interesse mútuo é condição necessária, mas não suficiente, para o sucesso das
negociações. Para o Mercosul, o objetivo básico do Acordo MercosulUnião
Européia deverá ser o de garantir acesso equilibrado aos respectivos mercados. Isso
implica necessariamente, de um lado, a eliminação das graves restrições de acesso que
produtos do interesse exportador do Mercosul sofrem na União Européia. De outro,
significa definir disciplinas para a eliminação de subsídios, em especial na área
agrícola, e medidas de efeito equivalente que afetam, direta ou indiretamente, os bens
objeto de comércio. Não seria razoável pedir ao Mercosul que abra seu mercado a
produtos europeus pesadamente subsidiados, que poderiam deslocar a produção interna.
Uma negociação meramente tarifária, sem levar em conta os aspectos acima, tenderia a
favorecer de maneira desequilibrada a União Européia, que já pratica tarifas
substancialmente mais baixas que o Mercosul mas, em contrapartida, protege setores de sua
economia com restrições não tarifárias e distorce o mercado por meio de subsídios.
Por outro lado, é conhecida a posição européia de somente negociar compromissos mais
restritivos em matéria de subsídios agrícolas no âmbito multilateral e de não alterar
os fundamentos da Política Agrícola Comum antes de 2006.
Parece claro, portanto, que a conciliação dessas posições deverá exigir grande
esforço negociador.
São negociações complexas, uma vez que não se reduzem a sua componente tarifária. Em
função das diferenças na estrutura de regulamentação do comércio entre as duas
regiões, o Mercosul defende a necessidade de um acordo prévio que permita simetria no
processo de desgravação. Para o Mercosul é importante, para dar previsibilidade,
equilíbrio e transparência ao processo, que todas as tarifas específicas sejam
convertidas, na tarifa base sobre a qual se aplicarão as reduções tarifárias
em seu equivalente ad valorem. É igualmente importante estabelecer
disciplinas para a eliminação das outras distorções que afetam o comércio bilateral,
tais como progressividade e picos tarifários, quotas, subsídios à exportação e
medidas de apoio interno.
Não se trata aqui de exigir a eliminação prévia das barreiras européias a nossas
exportações, mas simplesmente do estabelecimento de critérios que permitam um processo
equilibrado de desgravação. Em contraste, a União Européia apresentou uma proposta de
compromisso político de não aumentar as tarifas de nação mais favorecida vigentes que,
na prática, consistiria em uma concessão unilateral por parte do Mercosul, que pratica
tarifas que, em geral, são inferiores aos níveis consolidados na OMC.
Outro exemplo da complexidade das negociações é dado pelas diferenças de perspectiva
em relação a regras de origem. O Mercosul defende critérios gerais para a
determinação de origem, baseados em mudança de posição tarifária e em percentuais de
valor agregado regionalmente, com a possibilidade de regras específicas para produtos de
maior sensibilidade. Já a União Européia prefere estabelecer requisitos próprios, que
podem conter a descrição de processos produtivos básicos, para todos os produtos.
Creio ser útil enfatizar aqui que nosso objetivo das negociações com a União
Européia, assim como na ALCA, é alcançar acordos que efetivamente contribuam para a
eliminação de restrições a substancialmente todo o comércio, condição, aliás, para
sua compatibilidade com os acordos da OMC.
Os estudos econométricos já realizados têm indicado que os países do Mercosul teriam
mais a ganhar com um acordo de livre comércio com a União Européia do que com os
Estados Unidos. Em certa medida, essa conclusão simplesmente reflete a importância dos
obstáculos a nossas exportações no mercado comunitário. Apesar das conhecidas
implicações da Política Agrícola Comum, nossas exportações para a União Européia
apresentam marcada preponderância de produtos básicos, o que reflete, entre outros
fatores, a importância do escalonamento tarifário contra nossos produtos, que fez, por
exemplo, com que a Alemanha se tornasse um dos principais exportadores de café solúvel
do mundo.
As negociações do Mercosul com a União Européia deverão, por conseguinte, resultar em
um aumento efetivo no acesso de nossos produtos agrícolas e industriais aos mercados
europeus. Os países do Mercosul desejam que o crescimento do comércio internacional
reflita as vantagens comparativas de cada região e que também propicie o aumento
sustentado de nossas exportações com maior valor agregado.
Os investidores alemães no Brasil terão muito a ganhar com um acordo que proporcione
acesso efetivo de nossas exportações ao mercado comunitário. Mesmo aqueles investidores
que têm seus interesses voltados prioritariamente para o mercado brasileiro e do Mercosul
também terão a ganhar com um acordo que contribua para a sustentabilidade de longo prazo
do balanço de pagamentos dos países do Mercosul.
Um acordo equilibrado, que abra mercados e permita o crescimento sustentado do comércio e
dos investimentos entre o Mercosul e a União Européia contribuirá em muito para
consolidar a parceria entre o Brasil e a Alemanha, com benefícios para empresários e
consumidores nos dois países. A vertente econômica também se refletirá, como no
passado, no incremento do relacionamento humano, cultural, científico e tecnológico
entre os dois países.
As maiores economias da União Européia e do Mercosul serão os maiores beneficiários do
estreitamento dos laços entre as duas regiões. Cabe a nós, por conseguinte, a
responsabilidade de sermos seus maiores promotores. Como eu disse anteriormente, há
questões difíceis a serem resolvidas, que requererão equilíbrio e pragmatismo. São
qualidades de que Brasil e Alemanha já demonstraram dispor amplamente no passado, até
mesmo na construção de seus respectivos agrupamentos regionais
Celso Lafer,
Ministro das Relações Exteriores
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