Num
contexto generalizado de concessão das operações portuárias a entidades privadas, urge
clarificar qual o papel a desempenhar futuramente pelas Administrações Portuárias na
organização da actividade portuária.
Irão as Administrações Portuárias assumir-se como protagonistas numa
nova lógica de cadeia logística perspectivada como um todo desde o expedidor ao
recebedor final das mercadorias, ou pelo contrário irão limitar a sua actividade a um
mero papel de Autoridade Portuária, enquanto garante da segurança, salvaguarda da vida
humana e protecção do meio ambiente, ou, em alternativa, pura e simplesmente
desaparecerão de cena?
Tendências no Transporte Marítimo
Associadas ao fenómeno de globalização da economia, são hoje claramente
perceptíveis as profundas alterações a nível do mercado do transporte marítimo, com
as suas consequentes implicações sobre o sector portuário.
A crescente tendência para a especialização e aumento da dimensão dos navios, o
desenvolvimento do tráfego contentorizado, a emergência de grandes operadores à escala
global, a constituição de Alianças Estratégicas, a difusão de serviços Round
The World associados `a intensificação dos serviços feeder,
determinaram novos desafios que implicam a total reformulação da estratégia e
logística portuária.
Concentração de Operadores
A nível do mercado de transporte de carga contentorizada as fusões,
aquisições e alianças sucedem-se a um ritmo alucinante. Em 1981 os 20 principais
operadores mundiais representavam 32% da capacidade mundial da frota, enquanto que
em 2002 esta percentagem ascende aos 75% [1]
Num mercado perspectivado à escala global, este fenómeno de concentração permite
ganhos de eficiência (economias de escala, especialização), combinar recursos e
competências complementares, limitar a concorrência e conseguir vantagens competitivas,
facilitar a expansão internacional e acesso a novos mercados bem como proporcionar uma
quase integração vertical.
Embora os argumentos anteriormente apresentados para este fenómeno de
concentração e formação de alianças a nível global sejam válidos, a sua principal
razão é por vezes subalternizada. Citando Eddy Van de Voorde e Hilde Mersman na
Comunicação Future Strategies for rail Freight, ...formando Alianças
os Operadores Marítimos procuram obter um maior controle sobre a cadeia logística,
visando através do estabelecimento de acordos tarifários ganhar o controlo a prazo das
operações de transhipment e distribuição em terra.
Neste cenário de integração, são as grandes Companhias de Navegação
que têm assumido o controle de toda a cadeia, fragilizando a posição concorrencial e o
poder negocial dos restantes elos da cadeia logística perspectivada como um
todo desde o expedidor da mercadoria ao seu recebedor. Os portos, em particular, tornam-se
extremamente dependentes dos acordos estabelecidos com estes grandes Operadores
Marítimos.
Dilema das Administrações Portuárias
Como reacção natural a este fenómeno, as Administrações Portuárias
têm assumido vultuosos investimentos a nível das infraestruturas e superestruturas
portuárias, no sentido de se tornarem concorrenciais face às crescentes expectativas e
exigências por parte destes Operadores. Com o eterno argumento da
participação da iniciativa privada nestes investimentos, a nível portuário, têm-se
generalizado os acordos preferenciais para a exploração de terminais dedicados a estas
grandes Companhias de Navegação.
Esquecem-se porém os naturais conflitos de interesse determinados por
estes tratamentos preferenciais, nomeadamente, os efeitos perversos do abuso da posição
dominante, bem como a real possibilidade de outras Linhas de Navegação optarem por
preterir a escala nesses portos devido ao facto de não lhes ser concedido o mesmo tipo de
tratamento preferencial. Estes riscos agravam-se quando há uma clara percepção da
volatilidade destas alianças.
Administrações Portuárias Protagonistas ou meros Actores
Secundários
Perante a real possibilidade de se tornarem meros peões nas
mãos dos interesses e expectativas dos grandes Operadores Marítimos, assume-se como
prioritária uma resposta forte e decidida das Administrações Portuárias, assente numa
aposta prioritária na Logística Portuária, consubstanciada nos seguintes princípios
básicos:
- Ênfase na Vertente de Transporte e Distribuição Terrestre - Numa
perspectiva de logística integrada e face ao alargamento do conceito de hinterland
geográfico a um conceito mais abrangente de hinterland económico, a intervenção das
Administrações Portuárias não poderá apenas incidir nos subsistemas e fluxos
logísticos que se estabelecem na área de jurisdição portuária, mas terá
necessariamente incluir a análise das combinações modais que se organizam a partir da
interface portuária, visando a optimização da relação nível de serviço/custo da
cadeia logística, perspectivada como um todo, desde o expedidor ao consumidor final.
A crescente importância da optimização da vertente de transporte e
distribuição terrestre encontra-se evidenciada nas seguintes citações:
... a vertente de terrestre do transporte e distribuição representa
cerca de 70% dos custos de distribuição portaa-porta de um contentor. [2]
...podemos afirmar que cerca de 50% dos custos da cadeia logística de transporte
podem ser imputados ao transporte terrestre antes da entrada e após a saída da
mercadoria do porto, cerca de 35 a 40% ao frete marítimo e apenas cerca de 15% aos custos
portuários [3]
- Aposta no Marketing Portuário a delimitação do hinterland e foreland
competitivo do porto, assume-se como um instrumento fundamental para as Administrações
Portuárias, não apenas numa perspectiva de logística portuária, mas também por abrir
um enorme campo de acção a nível do marketing portuário, o qual não se pode limitar a
meras acções de promoção do porto em eventos internacionais do sector portuário.
- Protagonismo na Comunidade Portuária um porto moderno exige que
toda a comunidade se envolva profundamente na organização da actividade portuária,
assegurando uma cultura e mensagem comum que projecte a imagem do porto, por forma a obter
o máximo de ganhos para a comunidade em geral, assumindo que os interesses individuais
dos diferentes intervenientes não se podem sobrepor aos interesses da comunidade, e tendo
em atenção o pressuposto que o factor competitivo de cada um dos intervenientes na
passagem portuária, individualmente, está dependente do desempenho dos
outros intervenientes.
Assumindo o porto enquanto interface da cadeia logística, não seria
conveniente alargar o âmbito da comunidade portuária a todos os agentes económicos que
intervêm directa e indirectamente na prestação de um serviço de transporte,
nomeadamente aos transportadores rodoviários de mercadorias, transitários, operadores
logísticos, operadores de serviço de transporte ferroviário e gestores da
infraestrutura ferroviária?
- Fomentar a constituição de Parcerias para soluções de Transporte
Intermodal As Administrações Portuárias poderão desempenhar um importante papel
no fomento de soluções alternativas sustentáveis de transporte, nomeadamente o
transporte rodo-marítimo e o transporte ferro-marítimo, enquanto interlocutores
privilegiados entre os diferentes interesses em causa.
- Não negligenciar outros Segmentos de Mercado em detrimento da Carga
Contentorizada Embora a aposta prioritária na carga contentorizada seja
compreensível, considerando ser o segmento de mercado marítimo que evidencia um maior
ritmo de crescimento, não estarão as Administrações Portuárias a negligenciar,
inclusivamente ao nível dos investimentos, outros segmentos de mercado não menos
representativos a nível da actividade portuária? Não será redutor limitar todo o
debate sobre a concorrência portuária ao tráfego de carga contentorizada?
- Protagonismo na Cadeia Logística O estabelecimento de parcerias
com outros agentes económicos, nomeadamente na implementação de infraestruturas
logísticas directamente ligadas à interface portuária (ZAL Zonas de Actividades
Logísticas), nas quais fosse possível prestar serviços logísticos que permitissem
acrescentar valor à mercadoria, seria um factor decisivo no aumento da competitividade
portuária.
- Ênfase na Avaliação do Desempenho Portuário Impõe-se às
Administrações Portuárias assumirem-se enquanto garante da eficiência portuária. Este
facto traduz-se numa nova concepção e cultura de avaliação do desempenho portuário,
traduzida no redesenho e concepção de um sistema logístico integrado, numa perspectiva
de contínua auto-regulação, assente em indicadores de performance logística que
permitam a permanente avaliação e controlo do desempenho dos diferentes subsistemas e
fluxos logísticos portuários.
Concluindo, as Administrações Portuárias no actual contexto generalizado
de concessão das operações portuárias a entidades privadas e perante o crescente poder
negocial dos grandes Operadores de Transporte Marítimo, encontram-se perante uma
encruzilhada:
- Assumem o pressuposto de que o porto tem que ser perspectivado como
interface da cadeia logística, enquanto entidade global, pelo que é sua responsabilidade
garantir um desempenho portuário eficiente, funcionando como pólo dinamizador e
coordenador de toda a actividade portuária, sendo as entidades responsáveis pela
promoção do porto, gestão geral da área portuária, nomeadamente, através da
supervisão e articulação dos vários interesses em presença (económicos e sociais),
tendo em vista o interesse público como objectivo global.
- Procuram iludir-se no papel de Autoridades Portuárias, enquanto garante
da segurança, salvaguarda da vida humana e protecção do meio ambiente. A prazo, o seu
estatuto de Sociedades Anónimas, poderá determinar o esvaziamento destes
grandes desígnios face ao poder crescente dos grandes grupos económicos.
- Ou então, como terceira alternativa, ... fora de cena quem não é
de cena...
[2] Livro Branco
Política Marítimo-Portuária Rumo ao Século XXI, MEPAT, 1997;
[3] Institute of
Shipping Economics and Logistics;
agosto/2003
Fernando José
da Cruz Gonçalves,
Oficial da Marinha Mercante, Bacharel em Pilotagem (ENIDH - Escola Náutica Infante D.
Henrique), Licenciado em Gestão e Tecnologias Marítimas (ENIDH - Escola Náutica Infante
D. Henrique), Licenciado em Administração e Gestão Marítima (ENIDH - Escola Náutica
Infante D. Henrique), Pós-graduado em Gestão do Transporte Marítimo e Gestão
Portuária (ISEG - Instituto Superior de Economia e Gestão), Pós-graduado em Gestão do
Transporte Rodoviário de Mercadorias e Gestão Logística (ISEG - Instituto Superior de
Economia e Gestão).
Professor Adjunto do Departamento de Gestão e Logística da Escola Náutica Infante D.
Henrique, sendo responsável pela docência de disciplinas na área da Economia Marítima
e Portuária.
Consultor em Transportes, Portos e Logística em diversos projectos e
estudos realizados no âmbito de programas co-financiados pela Comissão Europeia.
Autor e co-autor de diversas publicações na área da Economia dos
Transportes.
fcgoncalves@oninet.pt
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